“Este tesouro, nós o carregamos em vasos de argila, para que esse incomparável poder seja de Deus e não de nós.”

(2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 4, 7)

O temas das virtudes é muito pouco abordado na Bíblia, de maneira intencional e sistemática, embora S. Paulo apresente algumas aproximações (1 Tm 6, 11-12 ou Tt 3, 2-10). A razão é simples: o Evangelho não é uma “doutrina” ou uma “moral”, mas a proclamação da “Boa Notícia” da libertação.

Desde o início, a tradição eclesial extraíu da cultura antiga as categorias conceptuais morais nas quais colocou o conteúdo ético da Revelação cristã. Não raras vezes e por influência estóica, esta aceitação a-crítica desembocou numa linguagem dualista da pessoa humana. Por exempla, as quatro virtudes cardeais, supondo mesmo que ela remonta a Platão (Rep. 4,6) e que se encontra já no livro da Sabedoria (8,7), é retomada largamente, na esteira de Cícero, por Santo Ambrósio (De Paradiso, 3, 14-18) e sobretudo por Santo Agostinho (De Libero Arbítrio, 1, 27) que generalizará o seu ensinamento (assim a noção de virtude = habitus de alma, no De Invent. 2.53). Foi principalmente São Tomás que, adoptando a antropologia de Aristóteles, concebeu uma sistematização das virtudes, realçando sobretudo o papel da caridade.

A doutrina tradicional sobre as virtudes partia de uma dupla preocupação: valorizar o elemento humano na vida moral, como resposta do Homem ao apelo de Deus e efeito da graça ao mesmo tempo. Por isso, os Padres da Igreja situaram muitas vezes as virtudes numa perspectiva ascética.

Para o cristianismo porém, a virtude não é um conceito abstracto de bem que dá corpo a uma filosofia da ascese. A virtude não é para os cristãos um fim em si mesmo, mas visa a santidade da pessoa: a participação do homem pelo seu esforço, para fazer o bem; e, ao mesmo tempo, a acção de Deus na pessoa, dando a esse esforço um valor divino. Esta dialética comunicativa pressupõe um “Alguém” e, neste caso, o absolutamente “Outro”. Numa linguagem clássica juntar-se-iam as virtudes morais com as teologias. Assim, ao contemplarmos as pinturas que nos são propostas, olhar para o próprio umbigo é uma busca que se impõe: procurar dentro de si o verdadeiramente humano, a singularidade do “ser pessoa a caminho” e ao mesmo tempo, olhar para o céu numa atitude de acolhimento ao Dom de Deus. A este encontro que produz vida em abundância chamamos experiência da graça.

As ilustrações de Luís Herberto revelam um sentido profundamente cristão, desde que evitemos a perspectiva de uma linguagem bipolar: o contraponto da virtude seria, entendido desta forma, o pecado, como se a virtude viesse do céu e o pecado fosse consequência da natureza humana. Haveria um antagonismo transcendência-imanência. Não. Na ressureição de Cristo se manifesta uma revolução na interpretação do homem: a pessoa humana é o lugar onde percebemos a transcendência viva e concreta. A essa transcendência chamamos Deus. Deus não está, pois, longe do homem. É a sua máxima profundidade. É um tesouro que trazemos em vasos de argila...

Pe. José Luís Gonçalves, CSh

DO CORPO E DA VIRTUDE
ou do poder da sugestão

Setúbal, Abril de 1999

Ao longo da História da Arte e até aos nossos dias, o Corpo foi e continua a ser a principal instância de motivação do impulso artístico, assim como o lugar previlegiado e a referência mãe de todas as processualidades. Sobre ele se exerceram e se exercem as primeiras acções de transformação de imagem e com ele e também a partir dele, adestrando o olhar e a mão, se concebem e produzem outras novas imagens.

Desde há vários anos que Luís Herberto vem manisfestando um acentuado interesse pelo Corpo na sua prática artística. Há dois anos apresentou, na Casa do Corpo Santo, um conjunto de telas de grande formato a que deu o sugestivo título Da Velhice. Nesses trabalhos procura desesperadamente esquecer a inexorável passagem do tempo pelos corpos com a riqueza da senectude, em registos subtilmente marcados pela harmonia processual e cromática entre a imagem de corpos masculinos moldados pelo trabalho e pela idade e o meio envolvente em que foram inicialmente registados.

Derivou, em seguida, para a auto-representação, sempre fiel ao seu postulado da primazia do registo e da pintura a partir de modelos, exactamente para desses processos partir para novos esquemas inventivos, e debruça-se, agora, sobre a virtude, a partir de personae femininas.

Aspiração à virtude e consciência do pecado contrapõem-se na história e nas vivências dos homens e hoje, mais do que nunca convivem e conflituam no âmago de cada um de nós, desencandeando apetências e comportamentos contraditórios. Qualquer um deles se cristaliza não apenas em sentimentos mas sobretudo em imagens. Imagens de desejos e de interdições que à liberdade humana plenamente assumida cabe seleccionar.

O Corpo sempre foi não apenas o envólucro mas o lugar de encenação e luta dessas pulsões contraditórias e aparentemente inconciliáveis. Por isso, o Corpo polariza tanto as imagens erotizadas de desejo e transgressão da norma como so conceitos de transcendência e de superação espiritual dos constrangedores limites materiais da sua natureza.

Os desenhos e pinturas com que Luís Herberto nos aborda o tema da virtude poêm-nos, quer através de um registo gráfico personalizado, quer mediante um cromatismo de tons quentes e suaves servidos por uma mancha nervosa, perante personagens femininas do nosso tempo, tanto na pose como no modo como se apresentam, que ambivalentemente sugerem tanto o desejo como a sua sublimação.

Contudo, parece claro, sobretudo nos dias que correm, em que o sexo está a deixar de ser definitivametente um tabú, que a imagem mais genuinamente erótica, ou seja, a que transporta em si maior pulsão vital, não é a que tudo mostra mas a que alimenta a imaginação pelo que sugere. E não será essa uma das missões da pintura?

Fernando António Baptista Pereira