Da Velhice, ou da pintura como adição de tempos
(do catálogo)

É comum associar-se à velhice a acentuação dos processos degenerativos dos corpos, principalmente nesta era de culto hedonístico da beleza jovial e do novo, o que conduziu à sua inexorável desvalorização social e cultural. Contudo, desde a Antiguidade e ao longo de largos séculos, quer na Europa, quer noutras civilizações, os anciãos detiveram notórias prerrogativas de poder na sociedade ou no seio familiar, além de um lugar proeminente no sistema do saber. É certo que esse lugar ainda não foi completamente usurpado, mas apenas nos casos excepcionais de génios literários, científicos ou artísticos ele se mantém incólume, já que outra característica desvalorizadora atribuída à velhice é a decadência das faculdades mentais e intelectuais.

A presente exposição de Luís Herberto deciciu, corajosamente, defrontar esse conjunto de problemas, abordando-o, pelo interior da própria práxis pictórica, como uma reflexão sobre os tempos na pintura.

A primeira evidência dessa original prática pictural manifesta-se nos modelos figurativos humanos preferencionalmente escolhidos para constituirem pontos de referência essenciais e dominadores de composições que primam não só pela generosidade das suas dimensões como pela grandiosidade ao nível do tratamento plástico: aí encontramos simples pessoas habitualmente reconhecíveis como sendo “de meia idade” ou mesmo idosos, quase sempre em poses de aparente lazer, que foram resgatadas ao esquecimento (não apenas ao de si como ao que têm sido votadas pelos outros, ou por todos nós, que ainda não chegamos a esse estádio de cumprimento desta existência).

Esse resgate, que a pintura tornou possível, processa-se a vários níveis e, em primeiro lugar, pela importância da nomeação do tema, no contexto da prática artística actual, habitualmente fascinada ou pelos inúmeros avatares tecnológicos ou por regressos a retóricas do clacissismo, posições aparentemente antagonizadas mas irmanadas no culto de uma imagem desertada pelo mundo algo impiedoso mas também cheio de esperança que nos rodeia.

Todavia, essa nomeação temática realiza-se através da revalorização da própria dimensão temporal na pintura: tempo evocado no enunciado, quer nas figuras de uma existência amadurecida, absortas num mundo interior que parece tão conforme ao que as rodeia, quer nos enquadramentos cenográficos, que vão do muro velho ao acidente geológico de ambígua leitura; mas também, tempo da anunciação, no minucioso trabalho pictórico de definição da forma e sobretudo da cor, ele próprio citação de numerosos tempos anteriores da História da Pintura. As monumentais composições que Luís Herberto expõe no cenário barroco da Casa do Corpo Santo, ele próprio um enquadramento grandioso e evocativo da espessura temporal que a História da Arte nos oferece, definem-nos, assim, uma poética pictural que entende a pintura como uma adição ou mesmo um original e elaborado tecido dos seus vários tempos, em que conceptualização e execução se harmonizam e valorizam mutuamente na expressão de uma diferença, que é, antes do mais, artística, mas também se situa no plano das convicções mais profundas, das atitudes e das solidariedades.

Setúbal, Junho de 1996
Fernando António Baptista Pereira

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- Pai, os pais sabem sempre mais que os filhos?
- Bem, uhm, acho que sim.
- Pai, quem inventou a máquina a vapor?
- Bem, penso que foi James Watt.
- Pai, porque é que não foi o pai dele que a inventou?

In: Metadiálogos
Gregory Bateson, Gradiva

O problema da genealogia dos “memes”[1] é este: Porque é que depois de Lucien Freud e de Paula Rego existe Luís Herberto?
Porque é que este traço é tão pessoal, tão expressivo? Porque é que este estilo é tão identificável? Porque é que Luís Herberto, jovem na flor da idade se dedica à curva inevitável da velhice, de alguma solidão, de algum abandono? Decerto que desenhará também raparigas frescas que dançam ballet. Decerto que tem segredos e erotismo próprios da idade. Então porque é que quer perceber o traço anguloso, da curva inevitável, da cor obrigatória, da solidão esboçada? A resposta é que Luís Herberto é um artista e um artista tem duas, três ou mais vidas próprias: esta é a do seu entendimento da nossa inevitável ontogenia – é público e partilhado. Mas existe uma bifurcação formal entre desenhar e pintar. E Luís Herberto desenha com força e decisão e depois qual anatomista antigo, cumpre o ritual do óleo e depois da formalidade, liberta o pincel e cria o contexto. Ou talvez não só assim: talvez o contexto e o conteúdo estivessem na memória que aprisionada no desenho se liberta formal e excessiva na pintura. As formas são grotescas? São-no como a realidade o é. E decerto aquele frade ou eremita, na sua intimidade, é assim. E decerto aquele leitor que usa listas telefónicas como assento, é assim. Como somos todos. É esta sensação de Humanidade, de realidade (que ao mesmo tempo é abstracta), que nos move e nos comove nos desenhos e na pintura de Luís Herberto. E depois há nele esta contenção quase disciplina: o tema comanda e o coração segue. Primeiro o olhar. Depois a decisão. E ao recomeçar, sente-se a manhã, a tarde e a noite: essa não desenha a musculatura de que é parte, e a cognição emerge e produz a emoção. A pintura de Luís Herberto é excepcional e única: na força, na anatomia feroz, no dizer a verdade do porvir; mas os desenhos anunciam subtilmente que não está quase nada dito e que novas bifurcações serão necessariamente produzidas.

Carlos Henriques de Jesus
Professor de Evolução Bio-Sócio-Cultural da Universidade Nova de Lisboa

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