UMA CASA NA PRAIA [2016/ 2019]



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Exposição no Museu de Lanifícios da UBI/ Covilhã

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Uma casa na praia!
130 x 130 cm, óleo s/ tela


‘'Uma casa na praia...’ | 2018/ 19

INTERROGAÇÃO | REFERÊNCIA
Aquilo que entendemos como Arte, é um processo multi-sensorial dedicado à percepção de determinados aspectos da nossa existência e que no que diz respeito à sua materialização, pode recorrer a qualquer recurso para a sua estrutura comunicativa. Neste sentido, nas inúmeras possibilidades que a Pintura admite, o próprio processo de estruturação é também relevante para o discurso formal e narrativo e sujeito a interpretações várias.
Este recente conjunto de ensaios visuais, que se apresentam como representação para um lugar ficcional, enquanto proposta de paisagem, surge com uma certa imprevisibilidade, no que tem dominado o processo na experimentação visual que desenvolvo já desde 1994, cuja investigação é mais orientada para temáticas que se enquadram na provocação, em questões socialmente disruptivas, em projectos reactivos e no contexto de enquadramentos que regulam as sociedades ocidentais contemporâneas, recorrendo a representações do corpo/ figura. Contudo, estas abordagens não representam mais oposição que concordância. São sobretudo questões documentais que se destacam nos seus modos panfletários.
‘Uma casa na praia...’, surge paradoxalmente entre a documentação e a memória, na sua apropriação enquanto sugestão de paisagem, como uma representação de um espaço que o corpo habita e comunica, ausente nestas composições, pelo menos na sua própria materialidade visual.
Formalmente, detém na sua génese, uma icónica fotografia na documentação visual contemporânea -
‘Case Study House no. 22, Los Angeles’ (1960) de Julius Shulman(1910-2009), provocando múltiplos ensaios que resultaram na pintura ‘Alex playing Shulman, with a fake Rothko...’ (2009/ 2019), já que estava, em simultâneo, a desenvolver a série ‘As Máscaras de Alex’ , apresentado no ISPA, Lisboa, em 2018/ 2019, e por mero acaso, sugeri ao modelo reinterpretar esta imagem, associando-lhe ainda uma memória histórica e documental de Rothko, não apenas pelo equilíbrio cromático, enquanto necessidade compositiva primária, mas também pela memória a uma obra e artista indispensáveis na cultura visual contemporânea, entre tantos outros. Na sua essência, ‘Alex...’ explora o registo visual ausente do apoio visual da fotografia e a partir daí, permite desenvolver um conjunto de estudos com alguma coerência visual, garantindo a memória visual e perceptiva face ao referente inicial. Desprovidos do ‘texto visual’, é natural antecipar algumas variações ao referente em causa, apesar da visível repetição morfológica patente nestas variações ao tema.

I
NVESTIGAÇÃO | ADAPTAÇÃO
Como referi, esta pequena série de estudos surge de modo oblíquo nos processos e projectos que desenvolvo. Neste caso e tempo, estava igualmente a desenvolver um outro conjunto de trabalhos a que intitulei
‘O que faz falta... é malhar na malta!’, apresentado na Biblioteca/ FCT (UNL/ Costa de Caparica) em 2018 e no TMG, Guarda, em 2019. Também este projecto se encontrava em curso já há muito ‘no fundo da gaveta dos projectos que um dia irei realizar...’, e na verdade mais na gaveta do que nas paredes do atelier, desde os tempos da Faculdade de Belas Artes, na década de 1990. Estrutura-se a partir das já recorrentes batalhas urbanas que se têm mediática e repetidamente instalado com as revoluções sociais na década de 1960, sem esquecer a lição das importantes e muito actuais pinturas que Júlio Pomar realizou, dedicadas ao Maio de 68, entre as ‘Batalhas...’ de Ucello, que o pintor tomou como próprias na sua adaptação, e que prosseguem de modo irrecusável o seu caminho construtor, entre operadores visuais e os seus públicos.
Estes estudos vão tomando forma entre dois projectos emocionalmente catalisadores - com as devidas distâncias, é claro! Quer nas citações a Shulman e consequente desenvolvimento e apropriação, quer nos subsequentes ensaios, há um registo interpretativo do natural, a par da memória visual do Atlântico, entre as costas da Terceira e as rotinas instaladas das visitas ao mar entre Lisboa e Cascais, com destaque para a praia da Parede, local catalisador no desenvolvimento do meu percurso.
O testemunho do olhar é de igual modo um pretexto descritivo para o recurso à Perspectiva, enquanto garantia para determinadas características construtivas da imagem. Garantem com o rigor necessário, a objectividade da representação, recorrendo a parcas demonstrações em representações de imaginárias construções arquitectónicas que permitem o seu efeito visual.
Correndo aqui o risco de alguma repetição, a imagem renascentista anuncia toda a evolução tecnológica da fotografia e do cinema, que justamente, recorre ao discurso compositivo que conhecemos na História da Pintura, acrescentando-lhe a vantagem do discurso ficcional, quando necessário. Por outro lado, o registo fotográfico mantém intactos os mecanismos visuais que asseguram a verosimilhança do espaço real. É o contexto da imagem que permite transfigurações simbólicas, pois se o registo mecânico permite uma captação objectiva do campo visual do observador, a representação gráfica oferece-nos o poder da síntese formal e da decisão compositiva. Deste modo, a análise formal do espaço real, é traduzida pelo recurso gráfico da linha, possibilitando o ensaio de inúmeras possibilidades visuais. Contudo, o discurso da síntese é sempre decisivo. Curiosamente, as possibilidades comunicativas do traçado, descritas no que representa a carga expressiva da linha, são nestas propostas de pintura, substituídas pela síntese da recta traçada com o auxílio de uma tábua ou qualquer outro objecto que permita obter linhas o mais aproximadas da recta geométrica, de modo a evidenciar a construção de planos cromáticos numa forma plástica que é em simultâneo síntese e matéria. Cada uma destas composições revela um exercício de geometrização formalista, que sem perder a sua estrutura material, deixa bem claro o que representa. Poderíamos igualmente avançar para uma exemplificação de um espaço real que vive de uma composição geométrica e abstracta, num afastamento deliberado do registo fotográfico e sedimentadas nas regras da representação rigorosa - Perspectiva.
Todos estes pretextos são válidos e não possuem exactamente uma categoria hierárquica para a sua construção, podendo ser utilizados como referentes, sem necessariamente determinarem rotinas gráficas e plásticas. E é precisamente nesta (des) organização preparatória, que se estabelecem relações visuais com as memórias dos espaços, a par da recuperação de dados visuais como contrastes cromáticos, proporções ou outros elementos construtivos que surgem durante o processo.

PRETEXTO | PROSPECÇÃO | PROCESSO
O espaço da Pintura é em simultâneo o seu campo de investigação, permitindo múltiplas e diversas abordagens e neste caso específico, a sua transmutação para os lugares da paisagem, enquanto coordenadas visuais que o corpo apropria e se instala, mesmo que ocasionalmente.
E precisamente para este conjunto experimental, pode-se igualmente afirmar que um desprendimento material da ‘obra acabada’ pode induzir ao erro da generalização e leituras frágeis por parte do espectador, já que, no senso comum, a necessidade de conclusões é um imperativo resolutivo muito estruturado no pensamento plástico e facilmente adaptado aos públicos. Contudo, por parte do operador visual, a esta necessidade do espectador/ fruidor, implica um modo operativo exponencialmente alargado às possibilidades criativas, mais definidas pelos limites das suas relações materiais e sensoriais, do que efectivamente pela sua intencionalidade. A memória dos cheiros, da água salgada que ressalta nas pedras e do calor reflectido nas pedras fica sem testemunho visual potenciando uma outra qualquer abordagem!
No seu já histórico e muito actual ensaio
Discours sur la cécité du peintre (1985), uma obra inevitável nestas andanças, Júlio Pomar anuncia para cada pintura, a necessidade de se resolver noutra, de continuar as interrogações e permitir que as dúvidas fiquem também registadas no suporte. Por um lado, uma acção desta natureza permite obter de imediato, um considerável número de propostas visuais, estimulando a coerência formal, a experimentação gráfica e cromática, os aspectos compositivos e também técnicos. Por outro lado, regista inevitavelmente o processo evolutivo do artista, possibilitando ao próprio e ao mundo exterior, uma aprendizagem da sua escrita. Dito de outro modo, as conclusões nesta actividade podem ser muito restritivas. Porque implicam limites e promovem a cristalização.
Estas considerações d'après Pomar, entre outros artistas que têm o seu lugar na minha galeria de referências, como Luís Dourdil, Michael Andrews ou Frank Auerbach, entre muitos outros, são estruturantes para o trabalho que desenvolvo em Pintura, muito levemente a partir dos finais da década de 1980, os primeiros anos de encontro com a Pintura e as demais Artes Plásticas, e mais rigorosamente no período final em que estudei na Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa, sobretudo os anos entre 1994 e 1997, estando sem quaisquer dúvidas, incorporadas até ao presente.
A ideia de evolução na continuidade tem servido de linha condutora, quer para cada série temática, quer em estudos mais acidentais, como é o caso da ocasional experimentação em pequeno formato aqui presente. É também um pensamento que agreguei ao processo criativo e experimental, no desenvolvimento do trabalho plástico e na sua adaptação na transmissão deste conhecimento.

Luís Herberto/ Pintor | Universidade da Beira Interior


Herberto, L. (2020). Uma casa na praia. Revista Atlântida, Vol. LXV, pp. 45-60. ISSN 1645-6815 Instituto Açoriano de Cultura