O QUE FAZ FALTA... É MALHAR NA MALTA!


Museu de Angra do Heroísmo/ Carmina, Galeria de Arte Contemporânea Dimas Simas Lopes
27 DE MAIO A 10 DE SETEMBRO


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"O que faz falta… é malhar na malta!"
Exposição na Biblioteca/ FCT-UNL, Costa de Caparica, 2018


Catálogo editado pela Biblioteca-FCT | NOVA:
Design de Rui Olavo
Fotografia de João Vasco, Pianista e Artista Visual
Textos de:
José Moura (FCT/ NOVA),
André Barata, Filósofo (Universidade Beira Interior)
Luís Herberto, Pintor (Universidade Beira Interior)

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TMG - Cidade da Guarda

O corpo do poder e o poder do corpo

Nesta exposição ‘O que faz falta... é malhar na malta’, de Luís Herberto, pensa-se a violência pela pintura. Um certo tipo de violência — desigual, política e urbana — do Estado, monopólio da violência legítima, sobre a rua que é de todos. É sobre a dignidade do corpo do cidadão que é exercida, sobre a sua carne civil sempre nua diante do bastão e dos instrumentos pelos quais o poder ganha corpo e doma a zanga social, calando a sua expressão, devolvendo em ‘intervenção’ e ‘choque’ musculado a resposta à intervenção pública que, acima de tudo, diz ‘presente’.
É uma linguagem de expressão de corpos, dos movimentos desses corpos em recontros, da sua carnalidade exposta, muito menos desenhada do que manchada num instantâneo de cores tensas e abertas, agarrando e devolvendo o nervo da urgência do acontecimento, do gesto, do golpe, da acção.
Se a corporalidade íntima já era na pintura de Luís Herberto objecto, meio e sujeito quase tangível, cada um desses planos emulando-se através e com os outros, fazendo do campo da experiência um campo de forças, agora, é a dimensão pública do mesmo corpo de gente, sem qualquer contradição com a sua nudez própria, que é trazida ao paradoxo da representação. O corpo vulnerável apesar de absolutamente transcendente ao potencial agressor — é essa a sua nudez —, o corpo que mesmo assim, e assim mesmo, comparece para se expor ou ser exposto, ecce homo pois claro, para ser torcido, flectido, vergado, sabe-se representante, na sua carne sensível, do corpo social, de todos os corpos da comunidade. E por isso é um corpo político. Não é só o monarca medieval que tem dois corpos, um seu, natural, carnal, que definha, e outro político, jurídico, imorredouro, místico, como descreveu Kantorowicz. É também quem protesta, o cidadão rousseauniano que, podendo, deve habitar dentro de cada indivíduo. Simplesmente, para esse cidadão que protesta, ser corpo político é precisamente poder ser agredido, espancado, ferido, até morto. A vulnerabilidade não é uma categoria menos política, sequer menos poderosa, do que summa potestas. É só nessa convicção que o protestante sai à rua. Sem ela, não sai. E não falta quem não saia, quem, pelo contrário, fazendo-se sabujo da orgia do poder, até seu arauto, se esconda nas suas fraldas até à miséria da dignidade intelectual. Há uma corja que topa da janela. A luta é assim. Provar-se a verdade crua é, para o protestante (um corpo próprio) dizer presente, para ser representante da sua causa justa. Malhar na malta é, por isso, uma possibilidade persistente incontornável da própria condição da sua existência pública.
As detenções, e em especial as de mulheres, ilustram modos de resistência da parte que tem de ceder no confronto desigual, numa ela deixando-se conduzir mas de peito aberto, resistindo não pela força mas pela ostensão da dignidade convicta das suas razões, noutra, ela de joelhos, pedindo à inércia do corpo que resista passivamente à detenção, ainda noutra, ela dobrada pela asfixia de um amplexo abusivo. Todas elas ainda resistem, mas de uma forma que transcende a situação que as domina, que conta com o olhar de fora que sobre elas recaia, ou clama por ele, exigindo-lhe que tome parte. Os representados são tão convocados pela representação como o representante está vinculado àqueles, não importa se indigitado ou não. A realidade da representação sobrepõe-se a quaisquer convenções.
O enfrentamento entre protesto e autoridade tem muito aqui de uma fenomenologia pictórica onde os corpos e a sua carnalidade são a matéria da linguagem, aspecto estrutural do trabalho de pintura de Luís Herberto, que evidencia continuidades e transformações de uma linguagem própria fortemente reconhecível. Mas, além dessa força fenomenológica, mão do pintor, o conjunto de obras desta exposição formula uma questão que não se dispensa a radicalidade de se pôr a si mesma em questão. Como quando um óleo não mostra a violência directamente mas pela sua representação exposta no enquadramento de uma exposição, num recuo reflexivo, que inclui o pintor e o público. ‘Pode a arte ser arte simplesmente porque exposta?’ perguntava o institucionalimo em teoria da arte. Pode a violência ser assimilada simplesmente por estar exposta? O institucionalismo pode ser uma armadilha, pode fazer a exposição contar mais pelo lado de quem cala — afinal, a representação está confinada ao quadrilátero que a emoldura —, do que pelo de quem dá voz. Representar-nos público e não nos deixar ser somente sujeitos, tornar-nos mais conscientes de que também somos ou podemos ser objecto, recompõe uma relação de pertença, que pelo menos não liberta nenhum olhar para a omniausência que tudo julga, ou então vira as costas para com indiferença não perturbar as lógicas de raciocínio e as condutas de apreciação esperadas.
Este conjunto de trabalhos de Luís Herberto não está desencarnado de um tempo e de um espaço, não são indiferentes a uma história recente e a uma geografia que também foi próxima. É preciso malhar no esquecimento e fazê-lo memória, não deixar que o mais significativo num tempo se igualize ao tempo anterior ou sucessor, como se nada mais houvesse além da realidade da passagem, tudo o mais indiferente, como convém aos cínicos que farejam migalhas de pão ou reconhecimento. Não pode ficar na parte perdida do passado uma depressão económica e social que voltou a dar sentido a que se falasse em “anos de chumbo”, em que o transitório, que deveria ser uma crise, condenava uma geração à interrupção do correr das suas vidas. Não das suas vidas, mas de que elas acontecessem, de forma muito literal. Faz falta dar poder à malta, cantava o Zeca Afonso. Para avisar, acordar, empurrar, animar, libertar a malta. Tudo isso que a força da ironia de Luís Herberto chamou “malhar na malta”, evocando com a sua pintura a canção e o que ela canta.

André Barata, Filósofo | Universidade da Beira Interior


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O que faz falta… é malhar na malta!
TMG - SIAC IV


O que faz falta… é malhar na malta!

Apropriando-me do título da canção que José Afonso escreveu e gravou em 1974, reavivando igualmente uma justa memória à sua obra, resolvi extrapolar alguns dos conteúdos das palavras de 'O que faz falta.' Talvez demasiado direcionado para apresentações consideradas excessivas e que se afastam do lugar-comum contemplativo da Pintura. São representações muito acomodadas à ilustração e ao mural, paradoxalmente subvertidas na escolha cromática. A intenção de utilizar uma linguagem declaradamente gráfica surge na analogia com o discurso directo do Desenho, que neste caso, se apresenta como uma escrita do imediato e que revela visualmente o seu autor. Nas referências documentais para a execução deste projecto, há muito no fundo da ‘gaveta dos projectos que um dia irei realizar’, incluí igualmente as muito actuais pinturas de Júlio Pomar alusivas ao Maio de 68, sem esquecer outras representações da temática, mais precisamente as ‘Batalhas...’ de Ucello, que o pintor tomou como próprias na sua adaptação, e que prosseguem de modo irrecusável o seu caminho construtor. Estas citações artísticas e fotojornalísticas são incontornáveis, já que Pomar tem sido ciclicamente uma lição de gesto e expressão gráfica, na acção do pincel e da tinta sobre o suporte. Aliás, foi ele o primeiro ‘grande mestre’ do meu trabalho! Optei por acomodar imagens da actuação de forças policiais e paramilitares, em cenários retirados de algumas cinematografias, do jornalismo televisivo, igualmente do registo histórico existente nos inúmeros servidores da internet, acrescido de encenações no atelier para uma mais prática estruturação destes documentos visuais. São quase exclusivamente momentos reactivos em manifestações várias, sobretudo quando estão em causa atropelos claros à dignidade social e aos mais elementares direitos da nossa existência social e democrática. Contudo, estas acções repressivas denotam sem surpresa, inúmeras contradições, sem esquecer que os seus actores cumprem industriosamente os seus papéis, em encenações e produções de carácter duvidoso! E se quem ocupa o seu lugar nestas forças encarregues da repressão ordenadora, cumpre também o seu papel no tecido social, há por vezes, quem interprete estes papéis demasiado à letra... O sangue que em ti derramo é também o meu! - é uma das pinturas estruturais para a abordagem à temática, esquiçada directamente na tela - alerta para esta situação pouco nítida, talvez mais pelo seu título e menos pela objectividade do que apresenta. Este projecto está visualmente dividido em dois momentos: por um lado, a representação violenta e consequente acção/ reacção dos seus actores, em registos intensos e socialmente politizados na sua exegese social, e por outro, o registo suave da cegueira instalada em todos nós. Quer dizer, uns mais que os outros! Mesmo com claras diferenças nos contextos sociais e neste intervalo temporal, nota-se que nos movemos na cegueira. Cegos ao que está claramente à nossa volta, cegos ao que acontece um pouco mais ao lado e do outro lado do globo. Estamos cegos aos atropelos incessantes a direitos básicos que ambicionamos para a condição humana, completamente anestesiados na materialidade e na comunicação visual mediática que preenche a cultura de massas. A tudo isto assistimos com inércia, num zapping inquieto que vai caracterizando a existência de muitos de nós, neste mundo da pós-televisão de acesso global.

Luis Herberto, Pintor | Universidade da Beira Interior
Lisboa, Janeiro/ Setembro de 2018

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Estudo para 'O sangue que em ti derramo…'
100 x 100 cm, óleo s/ tela